terça-feira, 14 de setembro de 2010

“Ativar o espaço-tempo da memória”


Carolina Ruoso

Mestre em historia
Coordenadora do Laboratório de Pesquisa em Histoira da Arte, Laphista 
da Galeria Antonio Bandeira - Secultfor, PMF

Há uma necessidade de silêncio ao ritualizar imageticamente a vida, é preciso negociar com o tempo do relógio, pois o tempo da espera é relativo, depende da força da alteridade, exercício de concentração ao deslocar o ritmo da rotina. Abrem-se as portas do Museu, o público como coadjuvante é organizado em fila e entram na sala ambiente do MAMAM no Pátio para participarem da performance do artista mineiro Marco Paulo Rolla. Logo na entrada havia uma barraquinha de feira com ramalhetes de ervas e relógios despertadores, uma mulher entregava as ervas e um homem os relógios despertadores, além da BULA PARA USO DE OBJETO E ATIVAÇAO DO TEMPO.
 Trazia, além do título, as palavras TEMPO e ESPAÇO, repetidas vezes na margem superior, na capa havia uma ilustração do ramalhete de ervas de cabeça para baixo, feito com nanquim. Ao abrir o panfleto, iniciavam-se as instruções de procedimento: “Localize as ervas em um local do espaço, ao solo” seguida de uma ilustração de uma mão colocando as ervas em algum lugar ao chão. Depois a frase ATIVE O ESPAÇO – Mas que implicações estão neste gesto?  Escolher uma posição, marcar o lugar como seu e ocupar, suscitaria uma reflexão sobre autonomia na sociedade contemporânea?
Enquanto isso desde 18 horas e quinze minutos do dia 24 de novembro de 2007, Marco Paulo está nu, em pé sobre um pedestal (ou púlpito?) preso à parede, situado à direita da porta de entrada. Segura com as mãos um relógio de parede cobrindo seu rosto. Relação com o tempo imposta pelo relógio inventado pelos homens na modernidade, em contradição com uma identidade que o projeto de modernidade também tentou inventar quando propôs suprimir as subjetividades.
ESMAGUE AS ERVAS, próximo passo para CHEIRO ESPAÇO. Corpo em movimento para produzir sentido na relação espaço-tempo. Era preciso que cada participante se desdobrasse e se expusesse saindo da norma para gerar uma imaginação criadora e elaborar no instante da ação uma estética que é prática e apropriação de uma representação da memória pulsante de um corpo que pensa com os seus diferentes sentidos: tato, olfato, paladar, audição e visão.
 Concentrado rigidamente como quem paga uma promessa, em um exercício de diálogo com a dor, Marco Paulo, desce o relógio cronometradamente. Mas o que ele irá fazer? Quais as relações possíveis entre a construção do tempo de um com o tempo do outro? O que pode ser re-ligação quando somos mediados pelo tempo do relógio? Disciplina é religião. O tempo linear é um método de salvação da modernidade?
 O conceito PERMANEÇA NO TEMPO, instituído após o gesto de esmagar as ervas contra o chão e produzir o cheiro-espaço, exige duração, dedicação e sensibilidade para sentir os diferentes perfumes. Malva, eucalipto, arruda ou espada de São Jorge - todas as plantas compradas pelo artista, com a intenção de produzir cheiros, em casas de candomblé que estão situadas no entorno do Pátio de São Pedro, na cidade do Recife, PE. Havia também o desejo de purificação e de liberação das ansiedades. Cura-PERMANEÇA NO TEMPO-memória é uma composição estética-corporal de conceitos interventores na tragédia humana contemporânea.
Somos as lembranças que compartilhamos, pois estas geram pulsão de vida, a nostalgia solitária provoca pulsão de morte e vida-morte-vida são uma constante necessária nas relações afetivas, um está contido no outro. As plantas escolhidas foram\são manejadas pelas culturas de origem africanas e indígenas, são práticas ancestrais. A memória é composta por lembranças e esquecimentos. A lembrança é trazida à tona pelo momento vivido, pela experiência. Ao macerar as ervas no chão com os pés – um gesto violento? – e o cheiro penetrado nas narinas de cada um, forçou uma elaboração subjetiva da relação de si com uma memória coletiva. Um êxtase de vida, numa re-ligacao presente&passado, uma fissura de si no coletivo que abriu portas e possibilitou encontros, essa é a purificação que rompe com a ditadura do tempo do relógio e da velocidade. E deixa a continuidade como narrativa de uma experiência de ser/estar no mundo adentrar na vida.
As imagens das ervas com os relógios despertadores que começam a soar insistentemente. O homem nu continua a baixar lentamente e precisamente o relógio, já passaram trinta minutos e ainda é preciso esperar, ninguém mais do mesmo jeito que entrou, depois de vivida uma catarse simbólica. 19 horas e 05 minutos, uma quebra. Marco Paulo joga com força o relógio no chão. Atitude imagética de esfacelar o relógio e parar o tempo indica um desejo de romper com uma estrutura alheia introjetada nos nossos corpos contemporâneos. Quando Marco Paulo quebra o relógio demarca o momento de retornar ao cotidiano e quem sabe produzir diferenças nas relações com o tempo, na sua complexidade, propondo-se a se encontrar com as permanências simultâneas e desconexas numa sociedade onde o efêmero é imperativo.    

O registro em vídeo da performance pode ser encontrado no blog do artista